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paulobarcala

Rabisco número 1: Quando a lua esconde o rosto

Atualizado: 6 de abr. de 2020

Costumava ir na manga de manhãzinha e aquém do lusco-fusco. Cruzava o canavial de Zé Rito encurtando caminho. Passava antes na ponte das Furnas. Mirava o córrego que hoje vai lento, esmirrado. De vez em talvez, lhe vinham. As lembranças. Todas. Mãe não deixava banhar lá, pelo perigo. No rio? Só com pai, tio ou similar. No Soledade de baixo ou no de cima, ruas do mesmo rio, a meninada, no entanto, comparecia sem supervisão, antes do almoço, depois e assim que alguém distraísse. Élvio e Jordano, é verdade, quase morreram no redemunho. Chovia. A força da água rolava pedra. Os demais passaram aperto. O dia começava muito antes de nascer. Vó pensava longamente qual neto estaria mais à mão, aí dava ordens ao azarado, que por maldição atrasava a brincadeira toda, porque ninguém começaria sem um de nós. Plantava, colhia, roçava, ia pra escola, cheia de línguas que não entendia. Pé por pé, dava uns três quilômetros. Tinha quem vinha de 10. Dormia na carteira. O que mais queria era junho. Gente de todo canto, até São Paulo. Primas desatadas. Era quando a lua devia esconder o rosto.

Isso tudo viu de novo lá na ponte. Sacudiu a cabeça. Nem assim. Tem ideias-grude. Enxugou o sol na testa e já tinha sede.

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1 Comment


andre.dibernardi
Apr 03, 2020

Escrita fina, quase feita de neblina. A síntese, a necessidade (e a capacidade) de dizer apenas o necessário. O cerne da palavra iluminada.

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