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paulobarcala

Rabisco número 3: “Soldado? Mais perigoso que isso. Eu fui carpinteiro.”

Atualizado: 16 de abr. de 2020

(Um mergulho no filme "Eu, Daniel Blake", de Ken Loach, que saiu em primeiríssima mão na edição nº 18, de dezembro de 2017, da Revista Ergologia, publicação da Société Internationale d’Ergologie cujo objetivo é favorecer o confronto e o diálogo entre os conhecimentos acadêmicos e os saberes provenientes das experiências sociais a respeito da natureza, da organização, da gestão e da governança do trabalho e da atividade humana).


“Estamos ficando cada vez mais longe do meu coração”. A frase, proferida logo de saída em resposta a um interrogatório surreal, é mais que o retrato do humor ácido e refinado do personagem-título, interpretado por um excepcional Dave Johns (British Independent Film Award – Melhor Performance de um Ator em um Filme Independente Britânico). É um símbolo e descreve a distância que separa Daniel Blake do figurino neoliberal, insensível e frio.

O filme do genial Ken Loach se passa em Newcastle, mais exatamente em sua porção central, Biker, também esta um ícone – da devastação provocada pelo ultraneoliberalismo de Ms. Thatcher. Em meados da década de 1990, estima-se que um em cada três habitantes adultos de Byker estava desempregado.

A produção anglo-franco-belga de Rebecca O'Brien levou a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2016. O argumento é de Paul Laverty.

Após sofrer um ataque cardíaco e ser desaconselhado pelos médicos a retornar ao trabalho, Daniel Blake, viúvo de Molly, luta para receber os benefícios sociais a que tem direito. Tromba, todavia, com as cercas invisíveis instaladas pelo sistema.

Em uma das muitas exasperantes andanças pelos labirintos burocráticos do serviço social inglês, onde o sarcasmo está inscrito no cartaz onde se lê “(The help) you want. The help you need”, intercede por Katie (a excelente Hayley Squires, British Independent Film Award - Melhor Revelação), mãe solteira de Daisy e Dylan que se mudou recentemente para Newcastle, despejada de um albergue londrino: “Estão tirando gente como eu de lá. Fica muito caro pra eles”.

O vizinho negro – apelidado de China graças aos produtos que importa e revende ilegalmente –, é chapa de caminhão a 3,79 libras por hora. “Pior que na China”, calcula. Num de seus encontros, ao comentar a maratona de Blake, vaticina: “Vão fazer sua vida virar um inferno. Esse é o plano.”

A solidariedade ainda existe. A delicadeza. De Blake para Katie e as crianças, destas com ele, do sacoleiro China, entre colegas de trabalho ou de Ann, a funcionária que conserva solitária, entre seus pares de atendimento ao público, o respeito humano.

O calvário pelas repartições e pelo cipoal do teleatendimento. “Obrigado por aguardar” depois de uma hora e 48 minutos ao telefone, ouvindo uma “música de merda”. Um roteiro kafkiano: o perito vai ligar antes que chegue a carta oficial, mas a carta chega primeiro. Nada pode ser feito. Só após a ligação do perito. Finalmente vem a ligação. Gravada. “Para mais informações, entre em nosso site...”. Analfabeto digital, avisa: “Se me der um terreno, eu construo uma casa. Mas nunca cheguei perto de um computador”. Em uma das tentativas de preencher formulários num telecentro, alguém de boa vontade orienta: “Vá com o mouse lá em cima”. Patético, ergue o mouse no ar.

Recebia o auxílio-doença até a fatídica avaliação da funcionária terceirizada. “É que o senhor só fez 12 pontos e precisa fazer 15”. “Isso é um jogo?”, pergunta. “Segundo nossa profissional, está apto a trabalhar”. Sim, é um jogo. E a gente perde.

É obrigado a procurar emprego e a elaborar currículum vitae, CV. Vai parar num workshop. O instrutor típico, entre enamorado do downsizing e amante da reengenharia, aterroriza: “60 empregados para cada emprego de baixa qualificação. 20 por um para os qualificados”.

Distribui CVs por obras e oficinas, mas não tem como comprovar a busca vã e frenética. Amarga sanção de quatro semanas: suspensão do auxílio-desemprego.

Explode a consciência de que tudo rema contra: “estou andando em círculos”. Acompanha Katie e as crianças à enorme fila da cesta básica. Desenrola-se a cena comovente em que Katie abre às escondidas uma lata de alimento, à beira de desmaiar de fome. Na parede, o anúncio: “Igreja. Café da manhã. Todo domingo. 10:30 às 12 h”.

Mais adiante, Katie é flagrada no supermercado roubando absorvente e desodorante, em meio às compras que pagou. Compreensivo, o chefe da segurança a libera com os produtos. O vigia que a flagrou dá-lhe um cartão maroto: “Posso ajudar uma mulher bonita assim”.

Blake vende os móveis. Conta de luz atrasada. China se oferece para ajudar. Ele desconversa: “Vou pras Bahamas”.

Desesperada, Katie procura o vigia, que traz a cafetina. Passa a trabalhar num prostíbulo. Na primeira vez, Blake fica com as crianças sob a desculpa de Katie de que ia a uma reunião de mães solteiras. No entanto, Blake acha o cartão do Escorts Club. Vai até o local e surpreende Katie. Carga pesada de emoções.

De volta ao serviço de assistência, resume: “É tudo uma grande farsa. Um homem doente procurando empregos que não existem. Tudo isso só serve para humilhar”. “Quando a gente perde a dignidade, acabou tudo”.

Como última opção, pixa as paredes externas do prédio do serviço de auxílios: “Eu, Daniel Blake, exijo uma nova data para entrar com recurso antes que eu morra de fome e que mudem a música de merda dos telefones”. Quando chegam dois funcionários, provoca: “É meu novo hobby, quer que eu adicione ao meu CV?”.

No reflexo de uma placa de propaganda contra as janelas do ônibus que passa, o anúncio do filme Victor Frankenstein, com Daniel Redcliffe e James McAvoy. O mundo é um monstro.

Ovacionado pelos passantes, vira atração para fotos e arranca de um transeunte: “Palavras de sabedoria. Você é o cara!”. Chega a polícia. Preso por vandalismo, réu primário e bons antecedentes, é solto em seguida.

Finalmente o dia da reavaliação pelo serviço social, com médica e perito. Katie, solícita, está com ele. Agora Blake tem advogado, não por acaso cadeirante, mais um excluído: “Você vai ganhar”, garante.

Levanta-se para lavar o rosto, suarento, ansioso. Nos espelhos separados do banheiro, a imagem partida. Um novo ataque cardíaco e a morte.

Velório de pobre, 9 da manhã. Katie lê a carta que Blake preparou para a audiência que não houve: “Eu não sou cliente, nem benefciário, nem usuário do serviço social. Eu não sou vagabundo, nem caloteiro, nem mendigo, nem ladrão. Eu não sou um número do seguro social nem um nome numa tela. Eu pago meus impostos corretamente e tenho orgulho disso. Eu não abaixo a cabeça, mas olho meu zivinho nos olhos, e o ajudo se posso. Eu não aceito nem preciso de caridade. O meu nome é Daniel Blake. Eu sou um homem, não sou um cachorro. Sendo assim, eu exijo meus direitos. Eu exijo que me tratem com respeito. Eu, Daniel Blake, sou um cidadão. Nada mais, nada menos que isso”.

Eu, Daniel Blake é um filme sem céu e quase sem cores. Esmaecido. Cimento e tijolos dominam as locações, e os interiores de casas empobrecidas. Ao redor, descendentes de imigrantes, operários, desempregados, dependentes dos serviços sociais, desvalidos... Um mundo marginal contra o muro. Um grito surdo. Um brado escrito em pixo.


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